Quando nascemos, somos atravessados pelo mundo que existe antes e depois de nós. Aprendemos a falar, a andar e a ser sobre a terra arada pelos nossos ancestrais, engatinhamos tateando o chão de nossos pais em busca dos caminhos que serão nossos e dos sonhos, ainda distantes, como os céus. Nessa jornada recebemos heranças, como porções de barro que edificam as paredes da casa que seremos no futuro. Delas, as mais importantes são aquelas não materiais, mas aqueles presentes que nos constituem pelo exemplo, moldando a forma das pessoas que seremos.
Das heranças que recebi ao longo da minha jornada, talvez a que foi mais importante para lapidar o amontoado de essência bruta que trouxe para essa vida foi o olhar da minha mãe para a sociedade. Desde pequena, acompanhei escolhas não usuais de uma mulher que se formou médica enquanto já era mãe, em meio às dificuldades de conciliar a maternidade, os estudos e o trabalho. Ela corajosamente se formou com filho pequeno, o meu irmão, mas abriu mão de parte significativa do prestígio da profissão ao decidir se dedicar ao exercício da medicina na área pública, em consonância com o juramento de Hipócrates, hoje meio esquecido, meio fora de moda.
Pequenina, eu não conhecia as palavras que guiaram minha mãe por tantos anos de trabalho e dedicação ao outro, ao ser humano que adoentado se apresentava em frente a ela nos consultórios dos postos de saúde, dos pronto-atendimentos e dos locais improvisados em que ela atendeu todas as pessoas, sem distinção. Atendeu quem tinha condições e quem não poderia pagar. Atendeu com zelo e com amor.
“Prometo solenemente consagrar a minha vida a serviço da Humanidade. Darei aos meus Mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação”. Ainda criança, eu não poderia entender o sentido profundo que essas linhas carregam, porém fui apresentada ao significado delas quando era levada em companhia de minha mãe para os locais onde ela exercia seu voluntariado e levava assim, um pouco de conforto e saúde em uma época em que o nosso SUS ainda era uma jovem criança como eu.
E assim, eu cresci, tendo como base da minha casa a empatia, o olhar para as necessidades do outro, para as desigualdades da nossa sociedade, na certeza de que o mundo poderia ser muito melhor, para todos, se juntos pudéssemos trabalhar pelo fim da miséria e da pobreza, pela educação e pela justiça social. Hoje, só posso agradecer, obrigada, mãe, por me fazer quem sou, mãe, professora, militante social e política, que sonha com vidas melhores para todas as pessoas.