CONCERTOS DA MADEIRA: ÁRIAS

CONCERTOS DA MADEIRA: ÁRIAS

I-

No primeiro lustro dos anos 70, presos numa armadilha do tempo entre Woodstock e o DOI-COD, o fuzil e o LSD, íamos ser uma banda de rock. Não se dizia “banda¨”, dizíamos “conjunto” de rock. Duas guitarras, batera, baixo, como os Beatles. Alienígenas sazonais filhos de gerentes de banco para não passarem em branco pela cidade, tinham que, como todo adolescente, se fazer pertencer a um bando, no caso, o mais descolado do lugarejo, o nosso. Eu queria a mean guitar, o baixo e a segunda guitarra tinham dono, a bateria era de Pedro. Os agregados do sistema bancário estatal, como não eram da nossa laia, haviam que se contentar com o triângulo, o reco-reco ou, bem a propósito, empresariar nossa futura monumental carreira. Estávamos na Cachoeira das Três Moças.  A bem da verdade, uma delas havia se casado com um engenheiro que, munido de régua T, régua de cálculo e mapas, construía uma ferrovia entre a tal queda d´água e a floresta amazônica.  Esse cavalheiro, cuja biografia se estuda ainda hoje no ensino fundamental, doou seu nome à cidade, e deixou ao léu a terra onde habitavam as náiades, no mesmo vaporoso sítio onde outros seres de maravilha surgiriam aos olhos meio míopes do mais ilustre conterrâneo.  As demais irmãs, dizem, voltaram à forma humana feminina; uma faz estátua no caminito em Buenos Aires e a outra trabalha em banco e posa para outdoors com seu nariz arrebitado, dentes empenados e olhar de orgulho do seu sangue.

Quando Fischer nos deixou empunhar os instrumentos, foi como folhear a primeira revista sueca vinda de não se sabe onde, em pleno cume da ditadura militar. Não saiu som algum. Nenhum de nós sabia tocar nada. Bastava, por enquanto, empunhar aqueles instrumentos quase imateriais, como se a música fosse brotar deles animada apenas por nosso profundo amor por ela. Pedro emprestou uma bateria de um parente e a montou, impecável, em seu quarto, espremida entre a cama, a vitrola e o monte de discos. Um amigo também adolescente que morava na vizinha Ville des Lacs Bleus (o francês estava na moda e era ensinado nas escolas e, aliás, havia ele nascido no distrito de Brejo D’Água, às margens de um pântano miasmático e recém mudara-se para a sede do município) sonhou meu sonho e desejou meu desejo. Talhou em madeira uma guitarra sinuosa e sensual como certas mulheres, pintou-a, proveu-a de ponte, cristal (chamávamos o captador da ponte de cristal), até de uma alavanca! knob e, sem solução para os trastes e marcações, tomou um velho violão de um velho pai, que já não o aguentava nos braços, tirou-lhe o braço, do violão é claro, instalou-o com esmero e ali estava minha guitarra. Que eu não tocasse absolutamente nada e só viesse a ter um amplificador dali a uma década era questão de somenos importância.  Foi quando, finalmente, descobri que eu não sabia tocar nem cantar porra nenhuma, que meu ouvido não reconhecia tons, e nosso conjunto de rock lá se foi, ser desafinado na vida.

II-

De volta à Rua Principal, atônito, em luta contra a agridoce nostalgia dos sobrados e casas com alpendre, eis-me a visitar o ateliê de Márcio Barbosa. Na curta caminhada, a terra natal aparece à minha percepção estupefata com ressonâncias do Grand Bazaar de Istambul. A fractal engenharia de trânsito me obriga a flanar um pouco até encontrar um oásis.  Humilde, discreto, o artista se esconde na revelação, sabe que seu dom é gratuito e conhece o segredo dos incas venusianos. Madeira e arame farpado ressignificado em sua dureza e espinhos que se tornam moles como os da mamona, anacrônicas ampulhetas (mas que já marcaram o passar do tempo nos primeiros computadores pessoais, quando gastavam minutos eternos para carregar os arquivos), espelhos partidos onde se perderam nossas faces, pinturas em telas planas de tvs, quiçá numa fina e irônica referência metalinguística ao outro de seus ofícios. Márcio simplesmente exerce o ofício da arte, e me surpreende sempre mais. Um canto de cultura na cidade que, um dia, deixou partir um santo homem. Como toda cidade, como tudo, como a madeira que envelhece e o arame que enferruja, tudo muda menos a mudança. Disse um poeta bissexto, num dia em que se comemorava o aniversário de sua terra:

“Parabéns Pedro Leopoldo,

  Parabéns para você!

  Perdeste o footing na praça,

  Ganhaste o pó da Cauê.”

III-

A amenizar a balbúrdia da Rua Principal e os prédios de caixões que brotam como cravos-de-defunto, há arte a transformar, moldar, retorcer, torturar as formas, deformá-las, atirar os objetos para longe de suas funções.  Avesso de um número primo, o artista divide-se e divide, como todo artista, “aquilo que ninguém diz”. Luta contra o tempo, quem não há-de. Transborda as bordas cercadas com arame farpado, lavra a madeira de antigas porteiras, o capim meloso dos pastos, as pedras das cavernas ressoam com seus estalactites e suas estalagmites,  as lagoas e os ribeirões onde nos banhávamos em argila e pedra-sabão.

Pedro Leopoldo ganhou Márcio Barbosa, o artista plástico, e cria seus netos.

Lá está ele, a tirar dos troços e tocos árias de uma sublime guitarra imaginária. Para o além do turismo espírita, eis um lugar a visitar em Pedro Leopoldo: a oficina do sacro ofício de fazer arte.

Um dia, se calhar, esculpirá minha lápide.

Alan Passos

12 de junho de 2023.

 

Redação

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