Maconha é remédio, mas para poucos

Maconha é remédio, mas para poucos

As drogas estão presentes na humanidade há milhares de anos, data-se a partir de 8000 a.C. o uso de  substâncias em rituais funerários e místicos, na produção de bebidas de ópio, manifestações artísticas, como também a fabricação de cordas e tecidos a partir do cânhamo da maconha, sua polpa para fazer papel, suas sementes como alimento e suas flores e folhas como remédio psicoativo.

Já na Europa, somente entre os séculos IV e V o julgamento moral iniciado pelas religiões cristãs começou a dizer que as drogas eram ruins e que os prazeres da carne eram contrários à vontade divina. A primeira guerra às drogas se dava a partir da misógina caça às bruxas (mulheres que detinham saberes sobre a natureza). Com a ascensão das grandes navegações, no século XVI, plantas locais começaram a se espalhar pelo mundo. A busca pela cura de doenças levou boticários e médicos a estudarem os efeitos das plantas para produção de remédios, assim a alquimia ia deixando sua visão mística, se tornando cada vez mais ciência.

Aqui, deve-se à afrodiáspora negra forçada a entrada da maconha, tanto que o nome dado à planta era fumo d’Angola. Com o passar dos anos o uso recreativo da maconha começou a viralizar entre os negros escravizados atingindo também os indígenas que passaram a cultivá-la. Na época pouca importância era dada a este uso, dado ao fato de estar restrito aos pobres não atraindo a atenção da classe dominante branca. Ainda assim, o uso sob recomendações médicas tinha uma aderência maior comparado ao recreativo.

Até a década de 1930, a planta continuou sendo citada nos compêndios médicos e catálogos de produtos farmacêuticos. Todavia, antes disso, a repressão e o proibicionismo se intensificavam no Brasil. Em 1830 o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a criar uma lei proibindo a maconha, onde a Câmara Municipal do Rio de Janeiro criminalizou a venda, o uso e a conservação do “pito de pango”, uma das denominações da maconha na história, com penalidade de multas para vendedores e prisão para negros escravizados ou não que se utilizassem da erva.

No período pós a suposta abolição (1888) o pensamento lombrosiano, este que tentava de forma racista vincular aspectos físicos e culturais de pessoas negras à tendência a criminalidade, começou a ter força no Brasil e daí foram se agravando as perseguições não só à maconha, mas a toda uma gama de elementos de matriz africana, como ritmos musicais e religiosidades (como o samba, o catimbó e o candomblé). Mas com o passar dos tempos, o conhecimento que atestava o caráter medicinal começou a ganhar força na ciência ocidental e a planta foi sendo cada vez mais pesquisada.

Voltando um pouco no tempo, depois do isolamento do princípio ativo do ópio (1804), abriu-se os caminhos para a purificação de várias outras substâncias contidas em plantas como a cocaína, a cafeína, o quinino etc. Em 1940, o canabidiol (CBD), hoje utilizado no tratamento de epilepsia e outras doenças, foi isolado, em 1963 sua estrutura química exata foi elucidada e no ano seguinte foi a vez do THC (tetrahidrocanabinol), responsável pelo efeito psicoativo da planta e por parte considerável de seus efeitos terapêuticos. Na década seguinte o número de publicações científicas aumentou e atingiu um primeiro pico por volta de 1975 quando um grupo de pesquisa brasileiro liderado pelo especialista em psicofarmacologia Erisaldo Carlini, deu importantes contribuições especialmente sobre as interações de THC com outros canabinóides. O interesse de estudos sobre a maconha foi renovado no início da década de 1990, pela chamada ciência canabinóide. E nos últimos cinco anos nota-se que há um aumento explosivo em publicações sobre o CBD.

Os recursos da biotecnologia estão a acelerar a aplicabilidade e formas de administração que a maconha pode ter, hoje sendo indicada para esclerose múltipla, dores crônicas, efeitos colaterais da quimioterapia e tratamento do HIV, epilepsia refratária aos tratamentos convencionais, depressão, ansiedade, síndrome do pânico etc.

Na atualidade do Brasil que se destacou nos primórdios de uma que viria a ser a ciência canabinóide é um dos países que mais se dedicam à pesquisa dos efeitos farmacoterápicos da maconha e do analógico sistema endocanabinóide. O Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em colaboração com o Instituto Max Planck de Psiquiatria de Munique (Alemanha) e com os departamentos de Neurociências e de Farmacologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, buscam em intervenções sutis tirar proveito das propriedades positivas da planta.

Nos EUA, em resposta à pressão pública para a aprovação do uso medicinal da maconha, o órgão responsável pelo controle de medicamentos patrocinou um estudo publicado na Arch Gen Psychiatry, edição datada de 6 de junho de 2000. Aqui, as reclassificações da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em 2014, também atendem as reivindicações de diversas marchas, campanhas, fóruns e movimentos. A Marcha da Maconha, Repense e Growroom foram determinantes para a descriminalização do CBD e do THC. O que começou com as mães que importavam ilegalmente canabidiol para seus filhos com epilepsia imune aos anticonvulsionantes disponíveis ganhou notoriedade alcançando o cenário nacional e a desconsideração da substância por parte da Agência.

A Anvisa, no dia 14 de janeiro de 2015 passou o CBD para a lista de substâncias submetidas à controle especial, agora enquadrada na Lista C1 da Portaria 344/98. Anteriormente, o Conselho Federal de Medicina, na Resolução nº 2.113, datada de 30 de outubro de 2014 aprovou o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias refratárias da criança e do adolescente. Houve ainda a aprovação de uma Iniciativa Regulatória para normatizar a importação específica do CBD e permitir que as famílias e pacientes tivessem um processo mais ágil.

Mais recentemente, de um lado, temos a notícia de que no final do ano passado (2019), a Anvisa liberou a venda de remédios à base de maconha em farmácias, vetando o cultivo. Do outro lado, têm-se os pacientes que se beneficiam do uso medicinal da maconha, o que ultrapassa o CBD, como é o caso do THC que teve suas propriedades medicinais reconhecidas pela Agência apenas em 2016, além, dos efeitos medicinais da planta em sua integralidade. O debate se torna acirrado porque inclusos nos 13 milhões de possíveis beneficiados por essa liberação (números da Agência), estima-se que uma parcela mínima desse número comemore a decisão com o medicamento em mãos, já que a (o) solicitante deverá desembolsar para a compra do produto CBD 18% da HempMeds™ a quantia de U$$ 599,00 (cerca de 1,7 mil reais), equivalente a 10 gramas de canabidiol industrial vendido sobre forma de óleo retirado do caule. E, segundo dados do IBGE de 2018, apenas 10% da população brasileira concentram 43,1% da massa de rendimentos do país, o que significa que a concentração de renda voltou a piorar e o índice que mede a desigualdade foi o maior da série histórica, iniciada em 2012.

Na maioria das vezes vista como maldita e nociva, a maconha é marcada por um sentimento moral inconsistente e uma tintura policial que é largamente marginalizada, acentuando e reforçando que o modelo de proibição não atingiu os resultados esperados se pensarmos apenas na facilidade que seria o cultivo caseiro para as famílias que têm seu direito à saúde violado.

A maconha é enquadrada tanto na Lei de Drogas (11.343/2006), quanto nas definições do CFM coincidente com a Anvisa. Diante disso, tem-se a formulação de um par antitético que prefigura a planta privilegiando seu enquadramento na Lei de Drogas, submetendo ela às atribuições de seu porte como um ato infracional, o que neste caso, rechaça o direito à saúde previsto não somente em Lei, mas como Direito Fundamental na nossa Constituição (Artigo 5º). Em detrimento do acometimento da saúde de pessoas que têm no seu uso terapêutico o alívio de seu padecimento, há um hiato, um abismo, presente entre a política antidrogas e o direito à saúde.

Esta planta é, como muitas outras, utilizada de forma medicinal há milhares de anos, e mais do que nunca, com os avanços da psicofarmacologia da maconha e de outras substâncias, vemos como a motivação de sua criminalização não paira sobre nenhum argumento se não o racial. Todavia, diferente da maconha, o álcool é considerado a droga mais perigosa e viciante do mundo mas segue abertamente aumentando seu mercado. Antes de dizer se é droga ou remédio, acho que esse contexto sugere a necessidade de desmistificarmos o próprio uso da palavra “droga” na sociedade.

Tayná Celen, psicanalista, doula, mestranda em Psicanálise pela UFMG e parte da coletiva DiverCIDADE – A Pedro Leopoldo Que Queremos”

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Coletiva Divercidade

Coletiva de luta, expressão cultural e educação popular, atuando desde 2018 na articulação política em favor dos direitos da população no acesso integral à cidade

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