Jupel se torna livro e é mais um rico registro histórico para PL

Jupel se torna livro e é mais um rico registro histórico para PL

Parte da turma que formou a Jupel se encontrou 50 anos depois, em 2018

Eram garotos (e garotas) que amavam os Beatles e a música popular brasileira. Na Pedro Leopoldo de então, com poucas TVs em preto e branco e esparsos assinantes do Estado e do Diário de Minas, as notícias custavam a chegar. E olha que muita coisa acontecia no mundo, naquele momento em que a juventude buscava o protagonismo protestando nas ruas de Paris e de Washington, na primavera de Praga ou no verão do Rio de Janeiro.

O porta-voz das mudanças era José Luciano de Castilho Pereira, o professor de História e Sociologia que mesmerizava uma plateia conectada, emocionalmente, com o novo mundo que se anunciava. Suas aulas no Colégio Imaculada foram o roteiro da grande viagem que aqueles jovens se dispuseram a fazer. E mesmo que não sofressem diretamente na pele as mazelas da ditadura que calava um país historicamente injusto e excludente, estes jovens se preocupavam. E falavam sobre isso. E queriam fazer alguma coisa.

Institucionalizaram a indignação e a curiosidade; e surgiu a Jupel, a Juventude de Pedro Leopoldo. As sementes, quem diria, vieram das sacristias. E das reformas promovidas pelo Concílio Vaticano II, que abriram a igreja católica e, consequentemente, trouxeram os jovens para suas celebrações na Matriz de Nossa Senhora de Conceição. Ali pontificava Padre Sinfrônio, capitão da reforma litúrgica que deixou para trás as missas em latim, até então rezadas de costas para o público.

A palavra de ordem era inclusão, em um grupo que tinha gente de todas as classes sociais, cores e crenças políticas. Não se falava ainda em gênero, mas o grupo tinha um número surpreendente de mulheres – hoje seria difícil formar um grupo de ação política e cultural em Pedro Leopoldo com tanta presença feminina.

Entre elas, Georgina Vieira, Lucinha Alvim, Ângela Albernaz, Maria Antonieta Pereira, Maria Salomé, Marília Reis (leitora voraz que, a conselho de José Luciano, procura “A mãe”, de Gorki e acha na biblioteca pública da cidade), Heloisa Faria, Maria Serafim, Maria Layeta.

O núcleo original era formado por Renato Hilário, Silvio Bahia e William Castilho, os dois primeiros já universitários, o terceiro ainda no seminário do qual partiria para a Psicologia. Na igreja, se juntavam aos padres, freis e freiras, e futuros clérigos. Alguns vinham da Ação Católica, culminância de vários movimentos de jovens (Jac, Jec, Joc, Juc) que, posteriormente, teve um braço político, a AP.

Aos jovens pedro-leopoldenses seduziu a ideia de um “socialismo humanista”, inspirado nos escritos de Munier, Teilhard de Chardin, Maritain e Lebret, entre outros ideólogos religiosos, que eles liam com sofreguidão.

Da Ação Católica vinha também José Luciano, que chega a Pedro Leopoldo como aquele tipo de professor que faz a cabeça dos alunos. “Tratando a todos como iguais, ele inaugura outra maneira de ser gente”, diz Renato Hilário.

Colégio e Igreja Imaculada Conceição

Em torno da igreja e do colégio, se reuniram três dezenas de adolescentes e jovens entre 16 e 20 anos, que se encontravam na Casa Paroquial para estudar o Evangelho segundo São Mateus. “Eu vim trazer a espada”, lembra Georgina um dos versículos e seu sentido para o grupo: “lutar pelo que até hoje acreditamos, uma sociedade mais justa e igualitária” – não por acaso conceitos que moviam os jovens franceses no maio de 1968.

Os ideais do maio de 68 na França inspiravam os moços e moças da Jupel

A turma da Jupel também trocava ideias sobre mudar o mundo nos retiros e encontros realizados em Nova Granja; e tentava “agir, refletir, agir” para transformar a realidade de uma tímida e conservadora cidade de interior nos grupos de estudos, na alfabetização de adultos na Vila Magalhães, nas palestras de conscientização das empregadas domésticas e nas missas dos jovens que coordenavam aos sábados.

Eles deram um passo determinado à frente na corajosa missa pelo estudante Edson Luiz, morto pela ditadura no Rio de Janeiro, e na escandalosa, para os padrões da época, conferência sobre educação sexual, que o grupo promoveu no Cine Central, em parceria com o Meta.

Quando veio o AI-5, tudo ficou mais perigoso. Em determinado momento, como não poderia deixar de ser, foram tachados de comunistas, subversivos da lei e da ordem, que tão pouco espaço reservava à liberdade naqueles anos de chumbo.

Vencida essa fase, alguns deles assumiram a militância de esquerda, radicalmente até, outros pensaram um mundo mais justo na academia ou nas periferias, mas todos seguiram seu caminho com solidariedade e amor ao próximo.

A maioria dos jupelianos, como se denominavam, voltaram às salas de aula – aquelas de onde viam o mundo pelos olhos de José Luciano – para serem também professores. Alguns, como o filósofo Ivan Domingues, são acadêmicos de fama mundial. Mas o grupo inclui também o craque atleticano Pedrilho, que deixou o futebol para ser professor e diretor de escola pública, na qual se aposentou.

As origens do pensamento dessa turma inquieta vieram à tona novamente através de um livro – “Jupel, memórias de um movimento político-cultural de Pedro Leopoldo nos anos 1960”, organizado por Georgina Alves Vieira da Silva, Ivan Domingues e Renato Hilário dos Reis, com a colaboração especial de Lucinha Alvim.

A ideia de contar suas aventuras em livro veio de um encontro ocorrido 50 anos depois daqueles anos tão jovens. Em 2018, os jupelianos se reencontraram na Fazenda Rapacuia, de Astrogil Bahia, cujos filhos Márcia e Silvio participaram do movimento. Nasceu ali a ideia de narrar essa história aos pedro-leopoldenses, inclusive aos jovens que, hoje, ainda reclamam um mundo mais justo para todos.

O som da Jupel

Imagine a cena: um grupo de jovens, que oscilava entre 16 a 21 anos, andando pelas ruas e bares da cidade de Pedro Leopoldo em meados da década de 60, tocando e cantando a bela canção do Marcos Valle, interpretada com maestria por Milton Nascimento. Trata-se de “Viola Enluarada”:

“A mão que toca um violão/ Se for preciso faz a guerra/ Mata o mundo fere a Terra/  A voz que canta uma canção/ Se for preciso canta um hino Louva a morte;

Viola em noite enluarada/ No sertão é como espada/ Esperança de vingança/ O mesmo pé que dança um samba/ Se preciso vai à luta, (Capoeira);

Quem tem de noite a companheira/ Sabe que a paz é passageira/ Pra defendê-la se levanta, E grita/ “Eu vou!”;

Mão, violão, canção, espada/ E viola enluarada/ Pelo campo e cidade/ Porta-bandeira, capoeira/ Desfilando vão cantando, (Liberdade);

Quem tem de noite a companheira/ Sabe que a paz é passageira/ Pra defendê-la se levanta, E grita/ “Eu vou”;

Porta-bandeira, capoeira Desfilando vão cantando/ Liberdade, Liberdade, Liberdade”.

O grupo acompanhava de perto a transformação da música brasileira, com a Bossa Nova, o tropicalismo de Caetano Veloso (Sem lenço e Documento…), o engajamento de Geraldo Vandré (Caminhado e Cantando…) e, é claro, Chico Buarque, com a eterna canção “Roda Viva”. O rock and roll surgiu mais tarde com o “iê, iê, iê”, ao som do qual se divertiam nas horas dançantes da casa de Dona Wanda Nogueira. Mas quem era esse pessoal?

Era um grupo que, como tantos outros, fazia serenatas e cantava nos bares de Pedro Leopoldo. Meninos e meninas comportadas, que contavam com todo apoio do saudoso Padre Sinfrônio, a ponto dele lhes entregar as missas celebradas aos sábados – uma novidade, já que antes, as missas só aconteciam aos domingos.

O apoio era decidido. Certa feita, atendendo a um pedido de Silvio José, Padre Sinfrônio solicitou aos paroquianos que não assinassem um documento da TFP – Tradição, Família e Propriedade, um grupo de extrema direita que era favorável ao golpe militar. E fez isso através dos alto-falantes da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, os mesmos de onde anunciava os eventos de sua igreja. “Na verdade, Silvio instou, convenceu Padre Sinfrônio a usar o alto-falante da Matriz contra o mega-fone da TFP. E foi o que aconteceu”, reforça Ivan.

“Padre Sinfronio tinha muita confiança no grupo da Jupel, assim como D. Serafim.  Desde que nossos argumentos estivessem fundamentados na doutrina da Igreja e sobretudo, nas decisões do Vaticano II, ele até resistia um pouco, mas se convencia e ia em frente e com muita força”, atesta Renato Hilário.

Os membros do grupo tinham várias coisas em comum: o gosto pela música, um professor revolucionário, a rejeição à política ditatorial da caserna e o compromisso com o Concílio Vaticano II. Foi o suficiente para que fosse criada a JUPEL – Juventude de Pedro Leopoldo, que marcou a história de Pedro Leopoldo e hoje se tornou um livro, com uma coletânea de artigos, entrevistas e outras interessantes passagens. É mais um belo e grande registro histórico que Pedro Leopoldo ganhou.

O livro traz um anexo importante, onde estão os registros da Câmara com “os dois meses que abalaram PL”- abril e maio pós março de 1964 – quando os vereadores votaram, em tempo recorde, a cassação de Ciciu e João Nunes. Os organizadores tentaram com isso fazer uma linha do tempo sociopolítica que antecede, acompanha e se despede da Jupel – criada sem formalidades em 1966, acabou em 1969 pelo motivo mais simples do mundo: boa parte de seus membros foi para Belo Horizonte, fazer faculdade e realizar seus sonhos.

Em um dos capítulos, homenageiam companheiros que se foram, com todo o afeto devido a pessoas tão especiais. Caso do Padre Pedro Lucas, de Maria Layêta e de Maria Serafim.

O livro foi lançado no final do ano passado, mas só agora chegou às mãos dos pedro-leopoldenses. A primeira edição está esgotada e os organizadores já pensam em uma segunda, que deve contar com mais informações e novas passagens dos anos 60.

A psicóloga social Georgina Vieira garantiu que a repercussão do livro superou todas as expectativas. E informou que, daqui a um ano e meio, mais um pouco da Jupel voltará aos dias de hoje – ou seja, novas e surpreendentes histórias estão a caminho.

Ou, como diz o historiador Marcos Lobato na orelha do livro, poderemos novamente “desbravar as ações e memórias dos moços e das moças da Pedro Leopoldo de outrora… jovens bravos, inteligentes e cheios de vontade de mudar o mundo, que as épocas fabricam parcimoniosamente”. (Beto Braga e Bianca Alves)

Bianca Alves

Criadora e editora do projeto AQUI PL, é formada em Comunicação Social pela UFMG e trabalhou em publicações como os jornais O Tempo, Pampulha, O Globo; revistas Isto é, Fato Relevante, Sebrae, Mercado Comum e site Os Novos Inconfidentes

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