Ovos Cozidos – dois contos

Ovos Cozidos – dois contos

Ovos-CozidosBruno Costa

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Acordei tomado por um pensamento: queria sentir novamente o coração na boca, um frio na barriga, os batimentos acelerados e as mãos suadas. Dizem que, quando se tem uma experiência extasiante, você a repete buscando sentir aquela sensação novamente. Sim, eu queria me apaixonar. Não serviria qualquer paixão. Eu queria amar o impossível, me apaixonar pelo improvável e passar meus dias fazendo sexo com o indizível. Uma coisa eu sabia: não adiantava sair por aí buscando a paixão. Ela vem até você. Dito e feito…

A campainha tocou, era Sally, uma jornalista que cobria literatura num desses periódicos sensacionalistas de décima oitava catiguria. “Impossível manter um diálogo razoável com um ser humano desses” — pensei. A entrevista a seguir mostrou que o impossível estava mais próximo do que eu imaginara…

— Defina sua obra.

-Procuro contar sobre o que experimento, percebo, e uso relações, sexo e bebidas para expressar certos pensamentos que observo acerca da sociedade.

— A figura da mulher em sua obra não é tratada de forma meio sexista?

— Por quê?

— Sou eu quem faz as perguntas. O senhor não acha?

— O senhor pode até achar. Eu penso que homens, mulheres, pessoas gostam de sexo. Eu quero trepar, gosto de mulheres, se elas gostam de mim, qual o problema? É uma troca, um usa o outro… Não vejo problemas. Ninguém faz nada obrigado. Faz porque quer. Sexo quando se ama é ótimo, mas quando não também… Eu, sinceramente, não entendo a caretice das pessoas com relação ao sexo. Alguns chegam a dizer que é coisa suja e se esquecem que nasceram dessa sujeira. Acho simples: tô com tesão. Quer trepar comigo?

Deu-se um silêncio.

— O senhor insiste em fazer perguntas… Está me convidando para trepar com você?

— Não me chame de senhor e, sim, é um convite.

— Impossível, senhor. Estou trabalhando, não costumo misturar lazer e trabalho e atualmente tenho uma namorada.

— Estava justamente lhe procurando.

— Como?

— Estava pensando que preciso me apaixonar, amar o impossível, mergulhar-me como há muito não faço. Ando perdido e tenho que me encontrar sem deixar rastros. Misturar lazer com prazer, enfim, sentir-me vivo, pulsante.

— O senhor enlouqueceu? Eu preciso ir. Minha namorada está lá fora me esperando…

— Mas a senhora sequer terminou o que veio fazer. Sua respiração, nossas respirações estão alteradas, por que vai fugir disso?

Neste momento, a campainha tocou. Era Sabine, a namorada, pedindo licença para ir ao banheiro. Mostrei o caminho para aquela outra aparição e disse para Sally terminar de fazer suas perguntas. Ela fez mais duas ou três perguntas burocráticas sobre se o livro estava indo bem, se já havia algum outro projeto, e eu respondi, mas encarando provocativamente e dizendo que preferia a jornalista anterior, já que agora ela estava a pedir informações dispensáveis. A moça saiu do banheiro e me deu uma deixa: disse-me que amava minha obra e que, além de ir ao banheiro, estava louca para me conhecer. Resolvi tentar a sorte e perguntei se gostariam de uma vodka. Escutei um sim e um não e tomei aquilo como um talvez. Preparei os drinks e a moça do não foi a primeira a virar sua dose. Fiz mais uma e resolvi tentar o improvável: “Vocês não gostariam de namorar comigo? Eu sei que acabamos de nos conhecer, mas eu preciso dizer que hoje resolvi me apaixonar e a vida mandou vocês para mim.” Sabine sorriu e Sally me perguntou se eu achava que a vida fazia deliverys. Achei espirituosa a pergunta e devolvi-lhe perguntando se ela ainda estava a me entrevistar. Ela disse que não e que eu é que deveria ser o jornalista. Iniciei minha tréplica dizendo que o que havia ali era um mundo de possibilidades de papéis para serem vividos, invertidos e, sobretudo, sentidos. Mudamos de assunto por conta de um comentário de Sabine sobre a minha cozinha e continuamos a falar de coisas triviais e a beber. Instantes depois, foi a vez de Sally ir ao banheiro e eu, percebendo que Sabine já estava na minha, tratei de lhe dar um beijo daqueles de distender a língua. Quando Sally voltou, ao ver a cena, paramos todos e, arfando, com um frio na barriga, o coração na boca, naquilo que poderia ser o início de uma rinha, num instante em que o tempo para e sentimos que o mágico e indizível era real. Desse dia em diante, deixou de haver eu, ela, elas. Agora acordamos, há seis meses, juntos, e desde então somos um trio: o impossível, a improvável e Sabine, a indizível.

 

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Acordei. Era domingo e Sally e Sabine ainda dormiam. Tratei de cozinhar uns ovos e preparar uma deliciosa panqueca de glevis que aprendi a fazer ainda quando moleque. Hoje, iríamos ao interior conhecer os pais de Sabine. Sabendo que os mesmos eram meio caretas, combinamos que seríamos a configuração dois a um, em que eu era o noivo e Sally a amiga recém separada. Levei o café da manhã para elas na cama, demos alguns beijinhos, comemos e nos arrumamos para sair.

A viagem durou duas horas e fora agradabilíssima. Música boa e, alegres, cantamos quase o tempo todo. Ao chegar, logo no primeiro lance, notei que teríamos um dia complicado pela frente. Os pais de Sabine, muito sorridentes, estavam saindo para a igreja e nos arrastaram para a missa. Havia uns 30 anos que, fora alguns casamentos de amigos, eu não pisava em uma igreja. Sally estava dirigindo, paramos em frente e eu pedi aos nossos sogros e Sabine que descessem, pois eu iria ajudar nossa motorista a estacionar. Como toda cidade pequena, sempre em frente à igreja havia um bar. Parada estratégica. Duas vodkas para mim e duas para Sally. Missa é uma coisa desnecessária: se você já assistiu uma, já assistiu a todas. O que mudava era apenas o sermão, e de sermões eu devo admitir que já ouvira todos que precisava. Confesso que a voz do padre serviu para mim como uma canção de ninar e acordei bem mais disposto quando Sabine me cutucou pedindo licença para que seus pais pudessem passar para se comungarem. Já estávamos no fim. Cochilei mais um pouco e acordei com um bando de desconhecidos me abraçando. Olhamo-nos e resolvemos nos divertir com a situação: abraçamos a todos, um a um.

Voltando para casa, o esquema de preparo do almoço seguia um ritual separatista: homens na sala, mulheres na cozinha. Como Sabine era a única etilicamente invicta, combinamos que ela voltaria dirigindo logo após o almoço. Havia também outros convidados: um tio, uma tia e dois primos de Sabine, que, notei, cresceram o olho na “recém separada” Sally. Por que será que as pessoas acham que quem acabou de terminar uma relação está matando cachorro a grito? Aliás, alguém já viu um cachorro morrer por conta de um grito?

O pessoal de Sabine era como nós, gostavam de biritar e, todos já mais altos, foram chamados à mesa do almoço. Foi aí que a porca começou a torcer o rabo… Sally se dirigiu ao banheiro para lavar as mãos e, na saída, um dos primos mais atirados resolveu ficar de tocaia. Como sobrava ao moço músculos mas faltava argumentos, ele logo partiu para cima tentando tascar-lhe um beijo roubado, como se aquilo fosse um artigo promocional imperdível. Vendo aquele peão brutamontes para cima de uma das minhas pequenas, desferi-lhe um murro nas fuças e Sabine, percebendo o que ocorrera, tratou de vir em nosso socorro, aplicando-lhe um chute nos ovos. Quando o irmão do beijoqueiro chegou, a confusão estava formada. Por sorte, o quebra-pau apenas começou e os pais e tios de Sabine se encarregaram do deixa disso e deram um corretivo verbal nos dois cavalos agressivos. Nervos aparentemente acalmados, sentamos e escutamos um discurso apaziguador do tio  que, ao terminar, ouviu um desabafo daqueles de jogar estrume no ventilador: Sabine assumira que tudo aquilo era uma farsa. Que éramos os três namorados e que as pessoas não eram objetos para serem manipuladas por quem quer que fosse. Que já estava cansada de viver mantendo aparências. Que não entendia por que aquelas pessoas que viviam brigando, se suportando e indo a igreja aos domingos condenavam quaisquer que fossem diferentes. Sendo que a diferença era justamente o que ela buscava.

Um silêncio sepulcral se instalou naquela casa que parecia uma torre distante de todo o mundo. Tentamos em silêncio engolir algo. Em seguida, nos despedimos dos tios horrorizados que se negaram a nos olhar ou tocar como se fôssemos os portadores de um novo vírus letal. E para minha surpresa, ao me despedir dos pais de Sabine, ouvi um sábio “Senhor: cuide bem delas, você tem boas moças. Voltem quando quiserem. Não é o caminho que sonhei, mas é o que ela escolheu agora e eu amo minha filha.” Aquilo nos emocionou verdadeiramente. Demos, então, o primeiro olhar terno e sincero desde que chegamos e terminamos por voltar, felizes, para nossa casa. O dia havia sido longo, mas nada melhor para um rei que chegar a seu castelo e poder tomar, em paz, sua vodka em seu copo, com suas duas rainhas.

Bianca Alves

Criadora e editora do projeto AQUI PL, é formada em Comunicação Social pela UFMG e trabalhou em publicações como os jornais O Tempo, Pampulha, O Globo; revistas Isto é, Fato Relevante, Sebrae, Mercado Comum e site Os Novos Inconfidentes

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